Percursos performativos e sonoros: reconfiguração da experiência da cidade

[PT]

É na cidade que as tensões sociais e políticas se manifestam de modo mais visível; nas relações entre a estrutura urbana, suas arquitecturas e os corpos que a habitam expressa-se a ordem social e as formas de exercício de poder que atravessam todo o corpo social, mas também as fissuras que as podem desestabilizar pela emergência de lugares e momentos de ruptura capazes de abrir o horizonte do possível. Simultaneamente, a cidade, constituindo-se como estrutura espácio-temporal condicionante das nossas experiências, é inevitavelmente uma ecologia ético-estética inquietante.

Partindo das poéticas operativas do percurso performativo «Partituras para ir» e do percurso sonoro «A cada passo, uma constelação» (Joana Braga, Lisboa, 2019), bem como das interrogações que os espoletaram e lhes deram forma, proponho reflectir sobre a caminhada como prática experimental e artística. Recuperando a centralidade do «espaço do corpo», ou seja, da experiência háptica e corporizada dos espaços que habitamos, visando a sua dimensão evocativa e sugestiva para lá de uma relação puramente óptica, impulsionada pela profusão de imagens que caracteriza a contemporaneidade, as práticas artísticas performativas, que exploram o acto de caminhar, ao criarem condições para uma intensificação da atenção, permitem, potencialmente, uma apreensão renovada da cidade e das questões com que nos confronta.

Questionando a predominância de uma relação funcionalista com o espaço e a hegemonia dos tempos produtivos da contemporaneidade, «Partituras para ir» e «A cada passo, uma constelação» procuram intensificar a percepção corporizada dos participantes, guiando a sua atenção para qualidades físicas e formais dos lugares que interrogam, orientando-a para os pormenores – acontecimentos, contradições, fracturas e sombras que os habitam –, e procurando criar condições para a escuta, com os ouvidos e o corpo, de fragmentos espaciais específicos, marcas que evocam usos e práticas que engendra(ra)m estes lugares, vestígios temporais neles inscritos, estimulando a interrogação das relações que estabelecem com a teia alargada de espaços e tempos inscritos na materialidade do território.

Em pontos e momentos precisos, ao longo de trajectos que cruzam lugares familiares e espaços escondidos na experiência quotidiana, à percepção corporizada dos lugares, são justapostas instalações sonoras ou de vídeo, que interrompem, deslocam e subvertem a percepção, abrindo a potência de reposicionar o ser-no-mundo neste encontro. A utilização de partituras, em que a palavra devém gesto, alimenta também estes desvios perceptuais e conceptuais. Estes percursos navegam e cruzam várias linguagens artísticas, estabelecendo relações diversas entre elas, mas mantendo-os legíveis individualmente. Assentando numa poética operativa de interrupções, recombinação e montagem, os percursos convocam alterações da percepção para criar condições para uma experiência fenomenológica particular do corpo no espaço, procurando, ao mesmo tempo, problematizar e reinventar as formas e os ritmos com que nos relacionamos com os lugares e o espaço.

Partindo destas experiências concretas, pretendo pensar como as figuras conceptuais da heterotopia e da constelação permitem expandir as qualidades expressivas e imaginativas da paisagem urbana, e, em simultâneo, abrir um espaço para repensar criticamente a forma como nos relacionamos com a materialidade, tempos e usos da cidade.

 

[EN]

The city is the place where social and political tensions are most visibly manifested. The social order and the forms of power that cross the entire social body are expressed in the relationship between the urban structure, its architectures and the bodies that inhabit it, at the same time that the fissures that can destabilize them by the emergence of places and moments of rupture capable of opening the horizon of the possible are also revealed. Simultaneously, the city, constituting itself as a spatiotemporal structure conditioning our experiences, is inevitably a disturbing poetic and aesthetic ecology.

Using the concrete examples of the performative walk «Partituras para ir» (Scores to walk) and the sound walk «Acada passo, uma constelação» (Each step, a constellation) (Joana Braga, Lisbon, 2019), as well as the questions that triggered and shaped them, I propose to reflect on the walk as an experimental and artistic practice. Recovering the centrality of the «space of the body» —the haptic and embodied experience of the spaces we inhabit —, thus, aiming the evocative and suggestive dimension of experience beyond a purely optical relationship driven by the profusion of images that characterizes contemporaneity, artistic practices that explore the act of walking potentially allow a renewed apprehension of the city and the questions that the city confronts us with.

Questioning the predominance of a functionalist relationship with space and the hegemony of contemporary productive times, «Partituras para ir» and «Acada passo, uma constelação» seek to intensify the embodied perception of the participants, guiding their attention to physical and formal qualities of the places they cross — events, contradictions, fractures and shadows inhabit them.

These walks aim to create the conditions for listening, with the ears and the body, specific spatial fragments, traces that evoke uses and practices that engendered these places, and temporal vestiges inscribed in them. Hence, the walks encourage speculation on the relationships between the several places crossed and the extended web of spaces and times inscribed in the materiality of the territory. At precise moments, along paths that cross familiar places and spaces hidden in the everyday experience, sound or video installations are juxtaposed to the embodied perception of places; installations that interrupt, displace and subvert perception, opening the possibility to reposition our being-in-the-world. The use of scores, in which the word becomes a gesture, also feeds these perceptual and conceptual digressions. Based on an operative poetics of interruptions, recombination and montage, these walks invite changes in the participants’ perception. The walks endeavor the creation of a particular phenomenological experience of the body in space, pursuing, simultaneously, to problematize and reinvent the forms and rhythms with which we relate to places. Starting from these concrete experiences, I intend to question how the conceptual figures of heterotopia and constellation allow us to expand the expressive and imaginative qualities of the urban landscape, while opening a space to critically rethink the way we relate to the materiality, times and uses of the city.

Joana Braga (DINAMIA’CET-ISCTE-IUL)

[PT]

Arquitecta, artista, investigadora. A sua actividade tem sido multifacetada, compreendendo a prática artística, investigação, curadoria e escrita. O seu trabalho articula práticas espaciais, discursivas, visuais e performativas para explorar a experiência do espaço. Investigadora no DINAMIA’CET (ISCTE-IUL). Mestranda em Estudos Artísticos (NOVA FCSH).

[EN]

Joana is an architect, artist and researcher. Her activity is multifarious, including artistic practice, research, curatorship and writing. Her work articulates spatial, discursive, visual and performative practise to explore the experience of space. Researcherat DINAMIA’CET (ISCTE-IUL).