Combinar-se com uma paisagem

Levantamento de uma acção performativa no espaço público

 

Final de Inverno e início do milénio na zona oriental de Lisboa.

A divulgação do evento anuncia um encontro combinado, num dia e a uma hora precisos, numa das encostas da Avenida Santo Condestável em Chelas. Aqui, foi provisoriamente instalada sobre o terreno baldio da vertente, uma bancada camarária, de andaimes e assentos de plástico, orientada para o local onde actualmente existe o Bairro do Condado.

Chegado o dia, o público aproxima-se da bancada e senta-se. Um outro público fortuito, que reside ou que trabalha nos bairros em redor e que atravessa circunstancialmente o local, detém-se por instantes. Uns e outros testemunham a trajectória de pequenos grupos de pessoas, que, em passo de jogging, percorrem diversos troços na colina em frente. As cores dos seus equipamentos desportivos estão combinadas com as cores garridas, na altura, recentemente intervencionadas sobre um grupo de edifícios emblemático da colina, o bairro da zona J.

A obra descrita, intitulada Paisagem Combinada, foi concebida para a exposição/evento Lisboa Capital do Nada que teve lugar em diversos locais menos convencionais da freguesia de Marvila em 2001. Para a maior parte dos espectadores combinados, ela foi uma situação preparada – e pensamos no piano de John Cage, aberto à eventualidade do acaso – que propiciou um acto de observação e, embora momentâneo, de habitar um lugar provavelmente menos familiar.

Enquanto proposição num contexto eminentemente não-artístico (o espaço público) esta situação não dependeu estritamente da presença de intérpretes (do seu corpo, da sua performatividade) para se constituir como experiência artística e social. A experiência do lugar – física, social e emocional – foi mediada pelo dispositivo-bancada que propunha um ponto de vista e uma duração não circunscrita à performance de corrida propriamente dita; um elemento portanto indestrinçável dessa mesma experiência e, em boa medida, autónomo. Efectivamente, se ela teve como função ser uma plateia que orientava o olhar dos espectadores para a presença fugaz dos intérpretes-corredores, ela foi igualmente um palco. Para quem observava exteriormente a situação ocorrida, a bancada, dispositivo de acolhimento do público, convertia-os (involuntariamente) em intérpretes e actores dessa mesma paisagem, constituindo-os como acontecimento inédito (insólito, singular) desse lugar.

 

Através do levantamento e da enunciação dos procedimentos da obra, tanto do seu processo como da sua apresentação, é possível explorar distintos aspectos deste objecto artístico, que intersecta a rede urbana pública, assinalando-a e problematizando-a; tornando-a porventura mais evidente à nossa consciência.

 

De que forma podemos experienciar lugares desconhecidos do nosso quotidiano, nos quais normalmente não nos detemos? Que ética podemos estabelecer com uma comunidade à qual não pertencemos e com a qual colaboramos num projecto performativo num espaço público? Que outras cidades, usos e temporalidades, emergem num processo de reconhecimento da alteridade da(s) cidade(s) e dos seus habitantes? Desde a perspectiva do autor da intervenção, também espectador/actor, a exposição deste projecto nos Encontros TEPe apresenta-se como oportunidade para discorrer sobre estas questões, trazendo-as à partilha e discussão colectiva.

André Guedes (FBA – Universidade de Lisboa)

[PT]

Artista visual, cenógrafo, investigador e docente universitário.

Estudou Arquitetura (FA-UL) e Antropologia do Espaço (FCSH-UL). É atualmente doutorando na Faculdade de Belas Artes (UL), investigador associado no projeto TEPe (FMH-UL) e docente da cadeira de Espaço Cénico na Universidade Lusófona do Porto.