A cidade que não se vê: uma paisagem dérmica da vida pública

 

Um grupo de pessoas cegas a caminhar por Lisboa após dois confinamentos decretados em 2020 e 2021, quando a cidade estava aberta à circulação, mas não o acesso a edifícios públicos. A experiência, como parte de trabalho de campo do projeto de Doutoramento em Estudos de Teatro, tinha como um dos objetivos aprender com a pessoa cega o que ela pode revelar do seu mundo. O método de trabalho de campo da investigação, alinhado à Teoria Fundamentada na qual a formulação teórica é conduzida pelo percurso do trabalho prático, prevê experiências práticas criadas para os integrantes do Grupo de Pesquisa “Olhar Activo”, com o objetivo principal de descobrir “o que podemos aprender com a experiência da pessoa cega que é público no teatro”. Caminhar por Lisboa em “desconfinamento”, acompanhados por investigadores TEPe, foi o cenário de uma das ações criadas para os integrantes do grupo de pesquisa: outro contato com a cidade permitiria ‘treinar’ a consciência do corpo quando na plateia do teatro. 

A cidade silenciada, que ainda despertava para o tráfico de carros e de pessoas, revelou camadas subterrâneas da paisagem dérmica e obstáculos para uma vida pública “sem mudar de identidade, de modo que os que estão a sua volta sabem que veem o mesmo na mais completa diversidade” (Arendt, 2001).

A partir da condição da cegueira, revela-se a ‘pele’ da arquitetura urbana materializada nos seus limites. A cidade é também uma metáfora da ideia da cegueira enquanto condição de ‘ser e estar’ fechado em si mesmo. Fechada ao acesso, limitada à vida pública e às diferenças, encerrada em si, a cidade também seria cega. 

A cegueira enquanto condição de ‘ser e estar’ no mundo, que permite experienciá-lo com o corpo, quando este é liberto do monopólio da visão. Um corpo que caminha pela cidade com um sistema holístico dos órgãos, com uma “perceção tátil do espaço” (Merleau-Ponty, 1992) que permite perceber uma geografia háptica (Mark Paterson, 2009), com características somáticas e políticas. Um corpo imerso na cidade, enquanto ‘carne’ do mundo percebido através de uma paisagem palpável de um espaço que possui ‘pele’ com texturas e saliências, que determinam a condição para o individuo exercer o seu direito à vida pública. 

A literacia háptica revelada pela experiência pode ser ouvida na instalação que se encontra no espaço do “Encontro Internacional sobre a Cidade, o Corpo e o Som” que, nos limites da palavra, expressam a experiência do corpo “diferente” imerso na vida pública. A paisagem táctil permite multiplicar significados e refletir como o ‘eu’ íntimo é afetado pelo espaço que o ‘eu’ possui na vida pública. A consciência do corpo da pessoa cega ativada numa relação háptica, sensual e afetiva, permite descobrir o que somos e o que a cidade nos permite ser, o que existe e o que está escondido no ‘ponto cego’ entre o ‘eu’ e o ‘outro’ na vida pública da cidade, que determina o que dizem ser o mundo que nos rodeia e o mundo percebido de facto, um mundo imaginado.

Cintya Floriani Hartmann (Centro de Estudos de Teatro, Universidade de Lisboa)

[PT]

Doutoranda da FCT com investigação sobre a experiência de pessoas cegas no teatro. Jornalista, pós-graduada na Universidade de São Paulo e Administração Publica na IEBusinessSchool de Madrid, gestora de projetos premiados para o desenvolvimento humano e inclusão, tem aprofundado seus estudos académicos sobre o que podemos aprender com a cegueira.