CAMINHANTES
(Notas para um texto em construção)
A propósito d’as diacroni-cidades
O caminhante escutou as rodas dos eléctricos nos carris e, pouco depois, sentiu o cheiro a óleo queimado de numa camioneta de carga. Seguiu. A caminhante escreveu que tinha tempo para “serendipiar”. Imagino ali uma fusão entre serendipidade e piar. A caminhante é uma das princesas do reino, uma daquelas
pessoas que vai caminhar sem nada procurar, disponível para a descoberta. Ela tem a dimensão de um pequeno pardal, daqueles que piam e que saltitam nas ruas das cidades e que se refugiam nas árvores onde depenicam as laranjas bravas. A caminhante escreve:“Fiz uma reentrância na Rua do Instituto Industrial”
Que será fazer uma reentrância? Fazer uma reentrância é diferente de ser uma reentrância. Imagina o que seria fazer uma reentrância no corpo, não com o corpo, mas no corpo. Ela fala na textura de um mendigo, curvado, com as mãos sobre a cabeça.
O caminhante escreve: “estou aqui”. E depois, insiste: “ficar dentro” de um tempo,ficar dentro, deixar de fora o resto do dia, mas também esticar o teu dia até às horas e caminhadas dos outros. Outro caminhante escuta barulho de pratos e talheres, depois, à medida que as Portas de Santo Antão ficam para trás, “o silêncio aumenta”.
Como é que o silêncio aumenta?! Como pode aumentar, se o que verdadeiramente tem a propriedade de aumentar ou de diminuir é o ruído. Mas fica bem assim, o silêncio a aumentar, porque interpela o leitor, porque este tamanho tem a ver com um processo de subtração. A cidade, com mais coisas subtraídas, permite que o som da
água de uma fonte do Jardim do Torel se ouça melhor. Depois, “um galo repousa à sombra da lápida dos mártires da pátria”. Porém, “as obras não tiveram quarentena”, escreve o caminhante. Há pausas. Pausas. Um pouco mais de sol.
E a sombra (assombrada) de Mário de Sá-Carneiro, antes de chegar outro caminhante com as suas manchas e as suas texturas e as suas cores dinâmicas sobre a cidade. A malha urbana inscreve-se em rotações e em sombras habitadas por pássaros. Grandes pássaros que esvoaçam no céu da cidade, sobre prédios edificados.
Eis a praça (de Londres).E depois o caminhante encontra a fonte luminosa. “Dorme-se na relva”, regista. Quem dorme? Uma mulher, um casal, um gato, um insecto (será que os insectos dormem?)?
Um cão entra em deriva, escreve, e em vez de trazer a garrafa de plástico à dona, “sai a correr atrás de algo que só ele saberá”. “Escuta-se um black&decker a mandar uma parede abaixo”, e eu imagino o tempo que demoraria mandar uma parede abaixo com um berbequim black&decker com uma broca de 5 mm. O caminhante acrescenta: “desconfinámos mesmo! Só faltam os caracóis.”
A caminhante inscreve entre páginas o que resta de um gelado que o filho comeu. Encontra pessoas “entupidas de saudades”, em busca de amigos “com a energia da primeira vez.” A caminhante caminha com o campanheiro, que lhe diz o que é pombo e o que não é pombo, já que “há outros trinados, de outros pássaros”. E neste ponto surge-lhe, já
quase chegando à rua da Graça, o cheiro da lavandaria, e a música da Guiné, em homenagem ao seu próprio parceiro. Na rua da Graça, com covid ou sem covid, há sempre movida, muitos barulhos, gente bastante, esplanada e cervejas. A caminhante começa a construir um herbário: folhas reais sobre folhas
transformadas, mezinhas citadinas.
Outra caminhante chegou cansada, reconhecendo como “é lindo ao longe, e ao pé”. O quê? Aquela parte da cidade, Sta. Clara, descendo. Ela cruza-se com um melro, com jacarandás floridos e com cães. Põe-se o sol. Vai-se deitando devagar na primavera de Lisboa.
Respira-se a luz. Nas partidas e chegadas de Sta Apolónia a caminhante vê três gigantescos guindastes sobre a cúpula do Panteão Nacional. Depois segue um casal. Na t-shirt dele está escrito “respect”. Respect até à praça do Comércio. O lugar do poder. Podia haver outro caminho a partir daqui, outras deambulações, outra descoberta do
mapa, outro desenho. Ou podíamos voltar para trás, incansáveis caminhantes em novas derivas. Poder sem ter poder. Poder andar. Cair.Erguer-se. Caminhar. Como diz Laurie Anderson, em walking and falling, andar é estar constantemente a cair
You're walking.
And you don't always realize it,
But you're always falling.
With each step you fall forward slightly.
And then catch yourself from falling.…
E eu ponho-me a pensar na diferença entre caminho e via. O caminho alimenta uma ação: caminhar. A via alimenta uma estrutura – por exemplo, a rede viária. O caminho comporta a possibilidade de nos perdermos, enquanto a via está ali para evitar que nos percamos. No caminho está-se sempre à beira da queda.
A via pode ser ampla, mas tem sempre baias ou margens bem definidas. Já o caminho pode ser estreito, mas os seus limites comportam cruzamentos e escolhas. Talvez a via tenha uma amplitude maior do que caminho; considere-se em astronomia a via láctea, em epistemologia as vias metodológicas (façamos uma análise da
pandemia pela via da bioquímica), e em política a necessidade de recorrer à via diplomática para resolver conflitos entre Estados. O caminho pressupõe um ponto de partida e um ponto de chegada (todos os caminhos vão dar a Roma) autorizando porém desvios ou micro-desvios internos, com os seus relevos e acidentes. A via é um terreno que se estende, flat, em que todos os pontos
podem ser pontos de partida e pontos de chegada. O caminho é sempre uma peregrinação e nessa condição convida a uma mutação ou descoberta interior. A via é uma condição ou uma plataforma para agir sobre qualquer coisa ou sobre um território. Caminhar está mais perto do andar, mais perto de cair. A via fica mais próxima de conduzir, de manipular.
Lisboa, 15 de Junho, 2020
Daniel Tércio
(a partir das anotações em caderno dxs caminhantes Ana Luísa valdeira,
Ana Pais, André Guedes, Catarina Canelas, Cecília de Lima, Luca Aprea,
Renata Araújo, Rui Antunes, Sérgio Bordalo e Sá, Sílvia Pinto Coelho e
Sofia Soromenho)